Escrito por: Marianna Yoshikawa em 2015-11-25 00:00:00
Crônica Celestial/Chegada: A Enviada.
Minha chegada não saiu exatamente como pretendia. Lembro-me de ainda não ter amanhecido quando pousei, as luzes das ruas ainda estavam acesas. Eu esperava que a minha descida não fosse percebida, a não ser por um garoto de 12 anos. Ele vinha de bicicleta com seus jornais, o ar estava enevoado e parecia pesar, ele usava uma jaqueta e com seu capuz tentava proteger o rosto do vento frio da madrugada. Um cachorro latindo por trás de um portão fez com que ele olhasse para cima bem no momento de minha chegada. Ele ergueu a cabeça a tempo de ver uma coluna de luz branca atravessar as nuvens e deixar uma estranha no meio da rua, e apesar de minha forma humana, algo em mim o assustou — talvez a pele luminosa como a lua, ou minha roupa longa e branca que se encontrava em farrapos devido a descida turbulenta, ou talvez tenha sido o vapor d’água em meus cabelos, e isso é claro, a chegada em sí. Seja lá que o tenha assustado, fez o garoto perder o equilíbrio e ir ao chão. Ele conseguiu se levantar, estarrecido ainda com o que acabara de presenciar, tentou balbuciar algumas palavras mas nenhum som saiu de seus lábios. Estendi a mão a ele num gesto tranquilizador, mas ele se virou e correu, deixando sua bicicleta e todos os jornais para trás. Não me preocupei, imaginei a cara que as pessoas fariam quando ouvissem a sua história maluca de que ele presenciou a chegada de um ser vindo dos céus, pobre garoto.
Ter novamente um corpo físico, ainda me era estranho, só então percebo que minhas asas sumiram. Os músculos de minha face ainda estavam rígidos, minhas pernas tremiam como as de uma criança dando os primeiros passos, e minha visão ainda não tinha se adaptado por completo à claridade que despontava no horizonte. Meus sentidos já recebiam estímulos de todos os lados, as cores do mundo eram vibrantes. O vento tocava minha pele e me dava a sensação de estar viva novamente, senti vontade de apanha-lo, estendo os braços como quem acaba de acordar, abri a boca e provei de sua secura.
Fiquei confusa por um instante, eu ouvia tudo que se passava ao meu redor: a ignição de um carro, a porta batendo, um choro de criança, o latido dos cães, um balanço enferrujado rangendo — você vai aprender a ignorar os ruídos — lembrei-me das palavras de meu mestre antes da descida. Não apenas ouvia, como sentia também o cheiro trazido pelo vento, os mais diversos odores possíveis. Isso atormentava meus pensamentos, tentava imaginar há quanto tempo não sentia e ouvia tais sons e cheiros mas não gostava de pensar da época em que vivi. Não que isso não importasse a mim, muito pelo contrário, afinal de contas só estou aqui agora devido a todas as escolhas que fiz enquanto vivi.
As orientações de meu Mestre ecoavam em minha mente como diretrizes — Lembre-se Saori, a terra já não é mais o lugar que você conhece, a cidade para onde está indo agora é um lugar sombrio, habitado por criaturas diversas. A fé, mesmo que ainda exista no coração dos homens, já não é a mesma. Tome muito cuidado, você encontrará outros enviados como você, eles a ajudarão em sua jornada. Boa sorte!
Crônica de chegada: Saori (Marianna Yoshikawa)
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